quarta-feira, 14 de março de 2012

O Poeta é um fingidor



O que Me Dói não É


O que me dói não é
O que há no coração
Mas essas coisas lindas
Que nunca existirão...

São as formas sem forma
Que passam sem que a dor
As possa conhecer
Ou as sonhar o amor.

São como se a tristeza
Fosse árvore e, uma a uma,
Caíssem suas folhas
Entre o vestígio e a bruma.



Análise do poema "o que me dói não é"

Poema tardio de Fernando Pessoa, escrito em nome próprio e datado de 1933, "O que me dói não é..." é um poema típico da fase tardia da produção poética ortónima de Fernando Pessoa.

A poesia ortónima de Fernando Pessoa segue um ritmo próprio e diferenciado do ritmo das obras paralelas dos seus heterónimos. De certo modo é, como Pessoa disse, ainda Fernando Pessoa mas estripado de todas as dimensões que eram usadas para escrever em nome dos heterónimos.

Resta Fernando Pessoa ele mesmo, pouco mas ainda muito. Mais racional e frio, algo intelectual e pensativo, sem chegar a assumir a sua tristeza num desespero real e destrutivo. Cabisbaixo mas quase indefinido nas suas palavras bem medidas.

Este poema em análise é suma perfeita de todos estes vectores complementares. Pessoa fala da sua tristeza, mas de forma intelectual, sem assumir um sentimento seja ele qual for. Como se conseguisse colocar a sua tristeza debaixo de um microscópio e a analisasse a frio, à maneira de uma autópsia, para melhor compreender o que sentia.

Como análise post-mortem que é, vê-se logo que se torna infrutífera. Querer compreender o que é depois de esse ser estar morto não traz vantagem qualquer a nenhum ser que está vivo. Matar para compreender não é, em rigor, razão suficiente para querer saber mais, apenas menos.

Pessoa queixa-se da ausência, do que não tem. E essa queixa é dirigida às "formas sem forma que passam", sem que a dor as conhecesse ou o amor as faça suas.

Queixa-se não do que "há no coração", mas das "coisas lindas que nunca existirão".

Queixa-se afinal de um futuro que tema nunca vai chegar. Estamos em 1933 e Fernando Pessoa tem 2 anos de vida restante. Estaria já certo do seu destino? Que acabaria sozinho e sem ambições concretas, sem estar feliz? Talvez. Talvez a sua poesia sempre reflectisse este medo e esta certeza negra - de que os seus sonhos teriam sido sempre demasiado altos para alguma vez se realizarem e que, na verdade, a sua felicidade andava na tal bruma que ele refere, mas numa bruma rasteira, baixa demais para os seus olhos sempre em busca das estrelas.

A sua busca pelas formas indefinidas, do sonho ou da realidade, marca o seu percurso terreno. Sejam estas formas as pessoas que passavam ou as ideias e as verdades, nem interessa. São formas porque são confirmações da sua incapacidade de as capturar e de as fazer deixar de ser apenas formas. Toda a forma é uma indefinição, uma falta de humanidade, de calor. Tem forma apenas aquilo que não tem conteúdo, que é vazio, linhas, sem dentro, só fora.

A tristeza que ele sente, equipara-a a estas formas a caírem em forma de folhas à sua volta, num ambiente frio e desolado. A sua vida é vivida no meio deste desespero racional em que se encontra preso e para o qual nunca achará uma saída racional. Porventura porque nenhuma saída racional poderá alguma vez existir para um homem desesperado com a realidade. Mas a saída emocional era-lhe já impossível - ele estava demasiado esvaziado, era afinal também já uma forma, como as formas que desejava possuir e compreender, era já só fora, linhas, sem dentro, sem conteúdo, frio e distante.

No vestígio e na bruma vivia os seus dias inconsequentes. Mesmo a sua obra talvez o desanimasse e apenas um pequeno, indistinto timbre de imortalidade o fizesse ainda respirar e trabalhar pelas noites frias da cidade, do alto da sua janela para a rua cheia de Universo. Ainda assim insistia em ficar vivo enquanto pudesse. Vivo enquanto todas as folhas não caíssem da sua árvore da tristeza e deixassem sequer de existir razões para ser apenas forma.

E que pouco pedem as formas só para existir...

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