quinta-feira, 7 de abril de 2011

O Poeta é um fingidor



Cansaço


O que há em mim é sobretudo cansaço —
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.


A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém,
Essas coisas todas —
Essas e o que falta nelas eternamente —;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço. A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém,
Essas coisas todas —
Essas e o que falta nelas eternamente —;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.


Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada —
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...
Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada —
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...


E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimno, íssimo, íssimo,
Cansaço...

Análise do Poema

Pessoa diz, na célebre carta em que relata a origem dos heterónimos, o seguinte: O difícil para mim é escrever a prosa de Reis – ainda inédita – ou de Campos. A simulação é mais fácil, até porque é mais espontânea em verso.)"
O assunto da simulação, vasto em Pessoa, encontra em Álvaro de Campos uma encruzilhada. Porque para Pessoa, escrever a Prosa de Campos é "difícil". Porquê? Porque em Campos, encontramos temas sensíveis a Pessoa e que Pessoa deslocaliza, pelo menos emocionalmente, para a caneta do seu heterónimo engenheiro naval. Esses temas são nomeadamente, os relativos à infância, à memória da sua mãe e das viagens para a África do Sul.
Como nasce Campos? Pessoa diz na mesma carta: "E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo individuo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos – a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.". Ou seja, Campos surge em oposição a Reis, o que Reis tem de exacto, Campos tem de maleável, o que Reis apresenta de rigoroso, Campos demonstra irracional.
Poeta sensacionalista por excelência, escandaloso e moderno, Campos descreve um mundo em mudança, por efeito retardado (pelo menos em Portugal) da revolução industrial. Mas há, mesmo em Campos, 3 fases distintas (Prado Coelho). A do Opiário (1914); a das grandes Odes (1914-16) e a fase pessoal, que termina com a própria morte de Pessoa (1916-35).
Choca em contraste que o poeta poderoso, à Whitman, que exorta delirante a máquina, que fala do peito as proezas da Energia e do Progresso, surja por vezes tão assumidamente deixado ao tédio, que quase abúlico, fica morto de entusiasmo e capturado pelo niilismo. Prado Coelho diz-nos que "Campos sentiu como Whitman para deixar de sentir como Campos" (in Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa). Tão semelhante se torna a Pessoa, que Pessoa o traz consigo para a vida do dia-a-dia, falando por exemplo dele a Ophélia de Campos, como se pela sua própria voz.
Campos é a parte desligada da realidade emocional de Pessoa. Nele, Pessoa escreve mais despreocupado do que se escrevesse em nome próprio, e sente segurança para se deitar ao lamento de uma vida de sofrimento. Campos é menos sereno, é mais intranquilo, mais solto, energético mesmo quando deitado ao tédio, do que Pessoa – ele mesmo.
O poema de que pede uma análise é um poema típico de abulia de Campos, é um texto filho da herança do grande texto em prosa Passagem das Horas (1916). O tom heróico, Whitmaniano, deixa de se ouvir, para Campos se deixar dominar por Pessoa, num tom mortal e lento, litanias nocturnas, textos deixados à confissão, sem filtros racionais.
A consciência que Caeiro quer não enfrentar, Campos perde-a pelo exagero (Eduardo Lourenço). A noite "materna" invade-o. Porque assombrado pela memória da mãe, da infância perdida, a sua sinceridade acha apenas cansaço, quando ele se vê perto da morte, sem esperança de um regresso impossível à felicidade infantil. A noite é, em sentido literal, a sua própria mãe, que o abandona, mas nunca deixa de o dominar.
Analisando o poema:
"O que há em mim é sobretudo cansaço/ Não disto nem daquilo, /Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo, /Cansaço." Ele fala do cansaço assumido como coisa em si mesma, sem já ser condição. Este tédio, que perpassa também na obra de Bernardo Soares, soa muito a desapontamento, a conclusões falhadas, objectivos não atingidos.
"A subtileza das sensações inúteis, /As paixões violentas por coisa nenhuma, /Os amores intensos por o suposto alguém. /Essas coisas todas – /Essas e o que faz falta nelas eternamente –; /Tudo isso faz um cansaço, /Este cansaço, /Cansaço." É um discurso contra a acção, contra a vontade, que no mundo não é operante, mas destinada ao fracasso. Campos elenca coisas que todos perseguem – as sensações, as paixões, o amor – e diz que todas elas falham em significado.
"Há sem dúvida quem ame o infinito, /Há sem dúvida quem deseje o impossível, /Há sem dúvida quem não queira nada – /Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles: /Porque eu amo infinitamente o finito, /Porque eu desejo impossivelmente o possível, /Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser, /Ou até se não puder ser..." Aqui Campos ironiza com aqueles que pretendem ter maiores pretensões do que aquelas que ele acha possível. Há quem ame o infinito – os amantes do conhecimento, os filósofos e os religiosos; há quem deseje o impossível – os sonhadores, os ambiciosos; há quem não queira nada – os pessimistas, os humildes. Todos eles – segundo Campos – erram, por serem idealistas. Ele ama infinitamente o finito – ou seja, quer tudo no nada, quer a compreensão subtil do desconhecido – quer o paradoxo, inatingível, mas contínuo na sua loucura.
"E o resultado? /Para eles a vida vivida ou sonhada, /Para eles o sonho sonhado ou vivido, /Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto... /Para mim só um grande, um profundo, /E, ah com que felicidade infecundo, cansaço, /Um supremíssimo cansaço. /Íssimo, íssimo. íssimo, /Cansaço...". O resultado – Campos anuncia-o, pondo-se acima de todos aqueles que crítica – é para os outros a vida. Mas para Campos, a vida não chega, em parte porque ele próprio nunca se sente satisfeito – não tem a riqueza, a fama, a mãe, a infância, sobretudo a tranquilidade e a paz de espírito para trabalhar. Por isso ele, quando se diz insatisfeito, revela-se invejoso da vida alheia.
Campos – Pessoa está cansado por não ter atingido o que para os outros é tão fácil, porque os outros não duvidam, são empreendedores, mesmo quando nada desejam. Deixam-se à vida, serenos ou irados, mas completos, humanos, que vivem e que morrem sem perguntas. Campos – Pessoa não é um ser assim, pois em si mesmo rumina uma intensa intranquilidade, que ele justifica como cansaço, não-agir, em razão de não aceitar o seu fracasso no mundo."

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